quarta-feira, 28 de outubro de 2009

A construção de uma personalidade oculta




Cada um de nós possui uma herança psicológica que não é menos importante que a nossa herança biológica. Esta herança inclui um legado sombrio que nos é transmitido através do ambiente cultural da nossa família. Somos, inicialmente, expostos aos valores, temperamentos, hábitos e comportamentos dos nossos pais e irmãos. Com bastante frequência, os problemas que os nossos pais foram incapazes de resolver por eles próprios vêm até nós sob a forma de padrões de adaptação disfuncionais.

A nossa família é o teatro onde nós actuamos com a nossa individualidade e os nossos desejos. É o nosso centro gravitacional emocional, o lugar onde começamos a adquirir e a desenvolver o nosso carácter, sob as influências das personalidades variadas que nos rodeiam (pai, mãe, irmã, tio...).

Na atmosfera psicológica criada pelos nossos pais e irmãos, educadores de infância e todas as outras fontes importantes de amor e aprovação, cada um de nós, crianças, dá início ao processo necessário do desenvolvimento do ego. A adaptação do ser humano à sociedade exige a criação de um ego – um “eu” - que sirva como princípio da nossa consciência em crescimento. Este desenvolvimento do ego depende em grande parte da repressão daquilo que consideramos ‘mau’ ou ‘errado’ em nós, enquanto tentamos identificarmo-nos com aquilo que é ‘bom’. Isto dá à personalidade em desenvolvimento uma vantagem estratégica na eliminação de qualquer ansiedade e, em simultâneo, ganhar tantos aspectos positivos quanto seja possível. O processo de desenvolvimento do ego continua até por volta dos quarenta anos de idade, sendo modificado de acordo com experiências e influências externas, à medida que interagimos com o mundo.

Mas à medida que o nosso ego cresce e se mostra ao mundo, a nossa sombra, os aspectos que escondemos para agradar aos outros, também cresce e desaparece nos recantos do nosso subconsciente. O “Eu Deserdado” é um produto resultante do processo de desenvolvimento do ego. Eventualmente este “eu deserdado” torna-se a imagem do ego reflectida no espelho. Nós deserdamos tudo aquilo que não se conforma com a nossa imagem de quem somos, criando assim uma sombra. E devido à necessidade do ego de criar um aspecto único de si (ou é bondade ou maldade, bonito ou feio, egoísta ou altruísta), todas as qualidades que são rejeitadas, negligenciadas e inaceitáveis em nós acumulam-se inconscientemente na nossa mente e tomam a forma de uma personalidade inferior – a sombra.

Contudo, aquilo que deserdamos não desaparece. Vive plenamente dentro de nós – longe da nossa consciência e da nossa razão – tão real como a nossa certeza de sermos um individuo. Um outro ego (alter ego) que se esconde imediatamente abaixo da nossa consciência. Com regularidade este aspecto rejeitado imerge como a lava de um vulcão que explode depois de milhares de anos sob pressão, normalmente quando nos encontramos distraídos, ou sob uma enorme pressão emocional. “Não sei onde tinha a cabeça!” dizemos nós. Ou “não fui eu! Jamais faria isso!” ou a mais tradicional “O diabo em figura de gente!”. Isto são os eufemismos utilizados pelos adultos para explicar o comportamento do alter ego, ou “outro eu”.

Assim, o ego e a sombra encontram-se num antagonismo perpétuo e que é a base de toda a mitologia: a relação entre dois irmãos, o bom e o mau. Representações simbólicas do ego e do alter ego. Se pegarmos nestes irmãos, no representante da bondade e da maldade, e os juntarmos teremos um todo completo. Da mesma maneira, quando o ego abraça a sua sombra nós conseguimos o sentimento de plenitude, a totalidade que sempre fomos.

Nos primeiros anos de vida, todos nós estamos isentos da capacidade de filtragem consciente. Assim, a nossa aprendizagem, em termos de comportamento social, é muitas vezes ambígua e muito solta. Podemos observar a criação da sombra num infantário, enquanto as crianças brincam, e a forma como esta sombra é reforçada pelos adultos à volta. Ninguém consegue ficar indiferente à maldade e crueldade que uma criança é capaz de manifestar enquanto brinca. Quando sentimos a necessidade de intervir fazêmo-lo muitas vezes de maneira espontânea. Naturalmente, instintivamente, não queremos que as crianças se magoem. Mas também queremos que a criança “deserde” as acções e sentimentos que nós próprios deserdamos, por forma a que a criança se insira no ideal adulto da brincadeira mais apropriada. Como se isto não bastasse, projectamos na criança que “se porta mal” aquilo que rejeitámos previamente em nós mesmos. Se a criança obedecer, irá ela própria deixar de se identificar com estes impulsos “negativos” para agradar ao adulto e obter aprovação.

As sombras dos outros estimulam um esforço moral continuado na criança à medida que vai desenvolvendo o seu ego e a sua sombra. Aprendemos, enquanto crianças, a esconder tudo o que sucede um pouco mais abaixo da nossa consciência. Isto para que os adultos nos vejam como “bons” e para que sejamos aceites com afecto pelos adultos à nossa volta.

A projecção – a transposição involuntária de tendências inconscientes inaceitáveis para objectos, animais e pessoas – funciona como uma ajuda ao ego frágil em desenvolvimento, na sua busca incessante de aprovação.

Ninguém gosta de admitir possuir um lado escuro. As pessoas que acreditam que o seu ego representa a totalidade de quem são, e que desconhecem ou não querem conhecer a totalidade de quem são na verdade, irão projectar as partes rejeitadas no mundo à sua volta.

Mas o oposto também pode acontecer. Quando a criança se apercebe que nunca poderá atingir as expectativas dos adultos à sua volta, poderá dar início a comportamentos inaceitáveis e tornar-se no bode expiatório para as projecções das sombras dos adultos à sua volta. A ovelha negra de qualquer família é o responsável, inconsciente, de transportar a sombra da própria família. Poucas famílias conseguiriam funcionar sem uma ovelha negra.

Sylvia Brinton Perera, no seu livro “The Scapegoat Complex”, afirma que o adulto identificado como a ovelha negra é, normalmente, por natureza um indivíduo sensível a estados emocionais inconscientes. Ou seja, a criança mais sensível é, regra geral, a que mais tarde irá carregar a sombra da família.

O próprio Jung deixa um exemplo claro desta projecção e de como pode afectar qualquer família. Conta a história de um homem muito religioso o qual nunca tinha pecado ou feito mal a quem quer que fosse na sua vida. Era um homem extremamente honesto e sentia repudia por qualquer acto moralmente incorrecto. Com um pai assim é fácil compreender que o seu filho se tornasse um ladrão e a filha uma prostituta (o motivo que levou o homem a procurar a ajuda de Jung). Uma vez que o pai se recusava a abraçar a sua própria sombra, a sua parte na imperfeição humana, os seus filhos eram compelidos a vivenciar o seu lado escuro ignorado.

Para além dos padrões existentes nas relações pais-filhos, há outros eventos que adicionam complexidade ao processo da construção da sombra. À medida que o ego da criança se torna mais consciente, uma parte de si cria uma máscara – ou persona – que é a face que mostramos ao mundo, a qual representa aquilo que a criança quer que os outros pensem que é. Esta persona vai de encontro ás exigências pedidas pelo ambiente e cultura que rodeiam a criança. Assim, o ideal de ego vai de encontro ás expectativas e valores do mundo onde a criança cresce. Mas por detrás deste ego, a sombra faz o seu trabalho de contenção.

Todo o processo de desenvolvimento de ego e persona é uma resposta natural ao nosso meio ambiente e é influenciado pela comunicação com a nossa família, professores e religiosos, através da sua aprovação ou reprovação, aceitação e vergonha.

As sombras dos membros da família têm uma influência muito forte no desenvolvimento do “Eu Deserdado” da criança. Isto é ainda mais verdade quando os elementos sombrios não são reconhecidos pelos respectivos membros da família, ou quando estes colidem na tentativa de esconder a sombra de um membro da família que seja mais fraco, ou mais forte, ou mais amado.


Um dos maiores perigos, quando a criança começa a desenvolver a sua sombra, encontra-se nas famílias disfuncionais, negativas, abusivas, ou, inversamente, certinhas, correctas, convencionais, preconceituosas. Em ambos os casos as famílias irão alimentar uma sombra carregada de vergonha, medo e culpa.

A construção da sombra é inevitável e universal. Ela torna-nos quem somos e pode levar-nos ao trabalho da sombra, obrigando-nos a abraçar a totalidade de quem somos e, assim, a libertar-nos. Ao trabalharmos a nossa sombra temos uma possibilidade real de sermos a totalidade que sempre fomos.

Autor: Emidio Carvalho
http://asombrahumana.blogspot.com/